O futuro da Esquadra começa agora
Investimentos em programas navais estratégicos fortalecem a defesa do Brasil no mar
10/11/2023 - Por Primeiro-Tenente (RM2-T) Daniela Meireles - Brasília, DF
Mais de dois séculos se passaram desde que o Pavilhão Brasileiro foi erguido, pela primeira vez, no mastro de um navio de guerra. Se hoje a Esquadra do País conta com 99 meios navais, somados navios, submarinos e aeronaves, ela era formada por apenas seis naus quando foi criada, em 10 de novembro de 1822. Naquela época, o principal desafio era manter a integridade territorial do Brasil, após declarada sua independência. As missões, agora, são outras, mas a necessidade de uma Força Naval moderna e pronta para atuar permanece.
"A Esquadra Imperial nasceu e entrou em combate na Guerra da Independência, que a nossa história pouco realça, ficando a percepção corrente de que a Independência se ganhou no grito. Na verdade, somente São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais aderiram de imediato. O restante do País teve de ser compelido a fazê-lo, em uma guerra que durou mais de um ano", enfatiza o Contra-Almirante Guilherme Mattos de Abreu, um dos organizadores do livro "Esquadra 200 anos: livro de quartos 1822-2022", da editora Letras Marítimas.
Aquela bandeira, hasteada a bordo da Nau “Martim de Freitas”, rebatizada de “Pedro I”, primeiro navio Capitânia da Esquadra brasileira, simbolizava a sua criação, há exatos 201 anos. Na ocasião, o primeiro brasileiro nato a exercer o cargo de Ministro da Marinha, Capitão de Mar e Guerra Luís da Cunha Moreira, esforçou-se para organizar a Força Naval do País, incorporando navios portugueses abandonados nos portos nacionais, recuperados pelo Arsenal de Marinha da Corte, e contratando marinheiros europeus, desmobilizados ao fim das Guerras Napoleônicas.
Desde então, o Brasil pouco se envolveu em embates de tamanha proporção. Dentre as que se destacam, estão a Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870) e a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais (1914-1918 e 1939-1945), além da pouco conhecida Guerra da Lagosta (1961-1963), crise entre os governos do Brasil e da França, decorrente da pesca não autorizada a navios franceses, no mar territorial brasileiro. Embora a diplomacia seja a principal alternativa do País para a solução de conflitos, a Marinha e sua Esquadra continuam defendendo os interesses da Nação no mar.
A Esquadra continua defendendo os interesses do Brasil no mar, como quando a fragata “Independência” impediu navio de pesquisa estrangeiro de coletar amostras em águas brasileiras, no início deste ano – Imagem: Marinha do Brasil
Já questionava, em 1923, o Capitão de Mar e Guerra Lawrence M. Overstreet, da Marinha de Guerra norte-americana: “A diminuição dos armamentos navais diminuirá as probabilidades de guerra?”. Segundo o Comandante, cujo artigo foi reproduzido pela Revista Marítima Brasileira deste mês, a decisão dos Estados Unidos de desativar sua Marinha após a independência, em 1776, comprometeu a capacidade de o País proteger seus navios mercantes do ataque de piratas no Mediterrâneo e de franceses, durante as Guerras Napoleônicas.
“A Marinha já passou por problemas análogos ao exposto por Overstreet, considerando o grau de prontidão da Esquadra. Ela era exclusivamente oceânica quando começou a Guerra da Tríplice Aliança, uma campanha tipicamente fluvial, que exigiu uma rápida adaptação, com a obtenção de novos meios”, avalia o Contra-Almirante Guilherme Mattos, acrescentando que o Brasil viveu a mesma dificuldade durante as Guerras Mundiais, em razão da falta de recursos no período. “Apesar de os navios serem relativamente novos, já eram obsoletos em função da rápida evolução tecnológica”.
Um dos três submarinos da Esquadra, o “Tikuna” (S34), executa manobra de alta complexidade “hi-line”, com a aeronave SH-16 Seahawk – Imagem: Marinha do Brasil
Atualmente, tramita no Senado uma proposta de Emenda ao artigo 166 da Constituição Federal, que pretende estabelecer o orçamento anual mínimo de 2% do PIB para ações e serviços de Defesa Nacional. O documento condiciona 35% das despesas discricionárias do Ministério da Defesa, isto é, aquelas que não são obrigatórias, para o planejamento e execução de projetos estratégicos, priorizando a indústria nacional. Inclui, ainda, uma regra de transição, para que o valor aumente gradualmente até alcançar o seu patamar.
O texto da PEC, conforme apresentado pelo Senador Carlos Portinho, observa o incremento percentual gradual (0,1%/ano) e está em sintonia com o cenário geopolítico atual, que tem incentivado grandes e médias potências a elevarem seus investimentos para renovar seus sistemas de Defesa.
A PEC justifica a proposta com dados do Banco Mundial, que apontaram a média global de investimento com despesas militares, no ano passado, correspondente a 2,3% do PIB. Ela também compara os investimentos do Brasil com outros países da América Latina: “Assim, as despesas brasileiras no ano de 2022, consideradas em percentual do PIB, foram inferiores às do Peru (1,2%), da Bolívia (1,5%), do Chile (1,8%), do Uruguai (1,9%), do Equador (2,2%) e da Colômbia (3,0%)”.
“Uma visão imediatista pode encobrir ou atenuar a percepção de ameaças e seus riscos associados e influenciar a alocação de recursos em defesa, reduzindo essa prioridade. Essa realidade é perigosa e traz consequências graves. A presença de potências extrarregionais no entorno estratégico brasileiro deve ser motivo de preocupação para o Estado. A existência de cooperações e parcerias entre tais potências e países de nosso entorno geram a necessidade de constante avaliação do cenário geopolítico, incluindo, nessa análise, a própria capacidade de dissuasão da Força”, analisa o Comandante da Marinha, Almirante de Esquadra Marcos Sampaio Olsen.
Máquinas avante
Nos próximos anos, um dos desafios para a Força de Submarinos é preparar os militares que operarão o SCPN “Álvaro Alberto”. “Este desafio será proporcional como à primeira imersão a bordo do F 1 na Itália em 1913 onde brasileiros, liderados por nosso patrono o Capitão de Fragata Felinto Perry, iniciaram a nossa jornada”, afirma o Comandante da Força de Submarinos da Marinha, Contra-Almirante Manoel Luiz Pavão Barroso.
Este ano, a Marinha também deu o pontapé inicial para a construção dos navios-escolta do Programa Fragatas Classe “Tamandaré". Pelo menos 30% da produção da primeira unidade é nacional e esse percentual deve aumentar, gradualmente, a partir da segunda, ampliando a independência científica e tecnológica do País. A previsão é de que as quatro novas Fragatas comecem a operar na Esquadra entre 2025 e 2029, fortalecendo o poder de dissuasão, a projeção de força e a negação do uso do mar sob jurisdição do Brasil , também conhecido como Amazônia Azul, contra os interesses nacionais.
Fragata “Liberal” durante o quinto teste
e de lançamento do MANSUP, armamento desenvolvido com 100% de tecnologia nacional - Imagem: Sargento Menezes
Para potencializar o poder de fogo dos navios brasileiros, a Força Naval realizou, no primeiro semestre deste ano, mais um teste de qualificação do Míssil Antinavio Nacional de Superfície (MANSUP), que faz parte do programa homônimo e que deve equipar as Fragatas da Classe “Tamandaré”. É um armamento desenvolvido com 100% de tecnologia nacional, que pode atingir velocidade transônica – próxima à do som -, com alcance de cerca de 70 quilômetros, voo em altitude “seaskimming” – rente ao mar - e com operação sob quaisquer condições climáticas.
Em outra ação que busca ampliar as capacidades dos meios da Esquadra, a Marinha ativou, no ano passado, o 1º Esquadrão de Aeronaves Remotamente Pilotadas (EsqdQE-1), que conta com o modelo RQ-1 ScanEagle. Elas possuem sistema de comunicação integrado com um alcance de mais de 100 quilômetros, autonomia de voo de mais de 20 horas, velocidade máxima de 150km/h e são empregadas em missões de inteligência, vigilância e reconhecimento, inclusive noturnas.
Aeronaves do modelo ScanEagle são empregadas em missões de inteligência - Imagem: Cabo Iremar
“Esquadras de guerra não se evocam de improviso”
Eles demonstram a antecipação da Marinha às necessidades de defesa, praticando a máxima do jurista Ruy Barbosa, em sua obra “Cartas de Inglaterra”, de 1896: “Esquadras de guerra não se evocam de improviso, nem se atamancam entre apuros com invenções engenhosas de momento. Com os progressos atuais da artilharia, da mecânica e da construção naval, podemos estabelecer o axioma de que, para a guerra, só se aproveitam os navios especialmente construídos para combate”.
A Marinha não apenas está preocupada com a aquisição de novos meios, mas com a manutenção dos que já estão em atividade. É o caso do Navio-Aeródromo Multipropósito (NAM) “Atlântico”, o maior da Esquadra e seu Capitânia, que deverá receber novos hardwares e atualização de software, no Reino Unido. O gigante da Marinha também terá seu sistema de comando e controle otimizado até o final de 2024, com a instalação de um console adicional para este propósito, conforme previsão orçamentária.
Treinar como se estivesse em guerra
Enquanto isso, a participação da Esquadra em exercícios internacionais como “GUINEX”, “UNITAS” e “Fraterno”, realizados em conjunto com outras Marinhas, contribuem para manter o preparo constante de meios e militares e promover maior presença da MB no entorno estratégico brasileiro, além do estreitamento de laços com nações amigas, em apoio à política externa. Nessas ocasiões, são favorecidos o intercâmbio de informações e de conhecimento e a perspectiva de cooperação no combate a atividades ilícitas, como tráfico de armas, de drogas e de pessoas, pesca ilegal e crimes ambientais no Atlântico Sul.
Exercício de abordagem não colaborativa com navio da Marinha do Togo, utilizando mergulhadores de combate, durante a Operação “Guinex III”, em setembro – Imagem: Marinha do Brasil
São, ainda, oportunidades de treinamento entre os diferentes meios da própria Esquadra e com meios das demais Forças Armadas, aumentando sua integração. “Esse esforço é perene e exige detalhada coordenação entre diversos patamares do Poder Naval. Manter tripulações bem adestradas e atualizadas é crucial para a eficácia operacional”, avalia o Comandante da Força Aeronaval da Marinha, Contra-Almirante Emerson Gaio Roberto.
Principais comissões da Esquadra neste ano
Houve, ainda, a “GUINEX III”, que incluiu treinamento no mar da costa ocidental do continente africano, com Marinhas africanas e europeias; a Operação “Abrigo pelo Mar”, que levou apoio médico e doações a moradores de São Sebastião (SP) atingidos pelas fortes chuvas em fevereiro; além da “ASPIRANTEX”, “ADEREX”, “TROPICALEX”, “UANFEX”, para preparo das tripulações e de meios, em todo o litoral do País.
Aeronaves de asa rotativa da Marinha, do Exército e da Força Aérea em exercícios de qualificação de pouso e decolagem a bordo do NAM “Atlântico”, em 2021 – Imagem: Marinha do Brasil
Para quem acredita que não existem ameaças aos interesses do Brasil no mar atualmente, um incidente em maio deste ano prova o contrário. Durante uma Patrulha Naval, a Fragata “Independência” impediu que um navio de bandeira alemã coletasse amostras do subsolo marinho na região da Elevação de Rio Grande (RS), para fins de pesquisa científica. A região é de exploração exclusiva do Brasil, conforme Convenção das Nações Unidas sobre o Direito no Mar.
"Felizmente, a América do Sul constitui uma das regiões mais estáveis do mundo na história recente. No entanto, o continente e seu entorno são muito ricos, o que demanda atenção. Sendo o maior país e a maior economia da América Latina, é natural que a sua dimensão traga responsabilidades as quais não pode se furtar ", alerta o Contra-Almirante Guilherme Mattos, para quem o País deveria investir mais em defesa diante de tal cenário. “Não se pode aguardar a configuração de uma situação séria para se providenciar o preparo de uma Força Armada”, argumenta.
Leia, a seguir, entrevista com o Comandante em Chefe da Esquadra, Vice-Almirante Edgar Luiz Siqueira Barbosa:
- Quais os desafios para a Esquadra brasileira se manter aprestada e moderna?
- Atualmente, quais as ameaças ou possíveis ameaças enfrentadas pelo Brasil, que exigem uma Esquadra aprestada e moderna?
- Como a Marinha tem buscado a ampliação de suas capacidades, a renovação de alguns navios que já estão entrando na fase final de sua vida útil?
A despeito da escassez de recursos, a Marinha vem buscando ampliar suas capacidades combatentes. Nesse sentido, destacam-se: o Programa de Desenvolvimento de Submarinos (PROSUB), que entregou o Submarino Riachuelo, plenamente operacional e integrado à Esquadra, com previsão de entrega do Submarino Humaitá em janeiro de 2024 e mais outros dois nos próximos anos; e o início da construção das Fragatas Classe Tamandaré, que dotará a Esquadra de meios de superfície modernos e capazes, com entrega prevista para a partir de 2025. Além dessas duas importantes iniciativas, o Comandante da Marinha tem buscado apresentar as necessidades aos governantes brasileiros, buscando ampliar o volume de recursos financeiros alocados para a Força Naval, a fim de permitir o prosseguimento dos Programas Estratégicos e o seu respectivo reaparelhamento. Em paralelo, enquanto novos meios não são incorporados, a Esquadra vem buscando manter a plena capacidade de seus meios atuais, cumprindo um Sistema de Manutenção Planejada, realizando reparos de grande envergadura, dos quais se destacam o Período Geral de Manutenção da Fragata Defensora, concluído em 2022, e o da Corveta Barroso, cuja conclusão está prevista para o segundo semestre de 2024.
- A Esquadra possui meios suficientes para fazer frente às possíveis ameaças ao País?
De forma complementar, é importante destacar que, além da quantidade de meios disponíveis, a atualização e a manutenção das capacidades embarcadas em cada navio, submarino e aeronave disponíveis devem ser adequadas para atender aos interesses estratégicos do País, constituindo um fator dissuasório frente as ameaças existentes.
- Qual a importância estratégica para o Brasil de construir no próprio País, com tecnologia nacional, os meios navais e aeronavais da sua Esquadra?
- Quantos meios da Esquadra foram construídos, até o momento, no Brasil?
Muito dificilmente um meio naval possui tecnologia 100% nacional. Contudo, a Marinha do Brasil vem envidando esforços para que a construção sempre busque incrementar o percentual de nacionalização e garantir a transferência de tecnologia. Busca-se, também, sempre que possível, que a construção ocorra no país, em parceria com um estaleiro local, como ocorre com os Submarinos Classe Riachuelo e as Fragatas Classe Tamandaré (FCT), para fomentar os empregos no próprio país.
- O que falta para que o País seja capaz de construir seus próprios meios navais e aeronavais, com tecnologia nacional?
-Quais são as principais atividades ilícitas coibidas pela Esquadra?
A participação em exercícios internacionais está alinhada à importância do Atlântico Sul como área prioritária em nosso entorno estratégico, sendo fundamental o controle do acesso marítimo ao Brasil e a presença ostensiva nesse espaço marítimo. Nesse sentido, a MB realizou a Operação GUINEX-III, entre 08 de agosto e 12 de outubro de 2023, com o objetivo de fortalecer as relações com as Marinhas dos países da costa ocidental da África, além de contribuir para a Segurança Marítima no Golfo da Guiné, que faz parte do nosso entorno estratégico. Essa operação também teve o objetivo de fortalecer a Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (ZOPACAS), que é um fórum para promover a cooperação entre os países costeiros do Atlântico Sul. A Fragata Liberal visitou portos de países da costa ocidental africana, como São Tomé e Príncipe, Camarões, Nigéria, Costa do Marfim, Senegal e Cabo Verde. Contudo, também operou com Marinhas de Togo, Espanha e Portugal.
Assista ao vídeo:
Nenhum comentário: